domingo, 20 de julho de 2014

Ariel

Uma doce jovem continua tocando seu violino, frente toda carnificina do panorama de Brueghel. A morte e a vida parece não toca-lá, segue assim, invisível. Intocável. O violino ocupa todos os espaços com notas dramáticas. Choros, sussurros, gritos. O dois possuiam uma vida própria. Uma solitária vida própria. O que aquela jovem fazia todas as noites? Penso que esse "não tocar" do mundo deveria ser desesperador. Mitos, imagens e dor. Uma porrada de dor sob a forma de poemas quase prosas. Observaria ela com aquele violino o dia todo. Não há pessoas ao seu lado - o mundo tinha um fluxo próprio. Pessoas. Trabalhos. Horários. Controles. Ela se desesperava com tudo aquilo. Aquela existência vazia, sem propósito algum e sem magia. Mas a existência dela, perdida, torta, sem rumo e com tantos medos também não seria digna de orgulho. Ela tocava. Chorava. Pensava nos grandes poetas já mortos. Aproximei-me de leve. Não queria espantar. Ela uma agente sem rumo do próprio destino. Produto de uma vida convulsionada. Não tinha uma voz doce, como pensei que teria quando a vi tocar. Não tinha forças ou perspectivas de melhoras. Aceitava, conformava, a derrota de sua felicidade. Alheia. À vida. À morte. Aos outros. À alegria e à tristeza. Já havia mudado de canto vezes demais. Procurado algo para lhe retirar a inércia em coisas diversas. Era, de certo, uma alma complexa. Entre as notas, que como um filho recém parido, não cessava o chorou, contou-me brevemente sobre tragédias gregas. Os olhos, negros, era um êxtase escuros - mergulhei-me neles enquanto dizia coisas sem sentido algum. Palavras saíam e eu me fixava no olho e na agonia, dela. Rezava, baixo, para deuses pagãos. Tocou-me, brevemente - como seria, eu vi, sua existência. Mãos secas. Alma ásperas. Corpo de todo um frio mórbido. Levaria, ela, para minha casa, esta noite. Sorriria para ela. Apresentaria a noite carioca e os poemas clássicos. Dizia, acompanhando o ritmo do violino - depois, de alguns minutos, percebi que som dele sustentava sua vida- que ela poderia correr. Agora. Para longe. Se trancar. Não acompanhar mais o show da morte. O espetáculo da superficialidade. Ela, Ariel, não precisava mais se prender a quase obrigações. Alguns nascem assim. Alguns são sensíveis demais para acompanhar a fornalha do viver. Ariel. Tal qual a suicida de Plath. Ariel. Nome doce, inofensivo, curto. Ariel, "Me arrasta pelos ares, -Coxas, pêlos; Escamas de meus calcanhares"